Foto: Carlos Insaurriaga / GEB/Divulgação
O goleiro nasceu e cresceu como um jogador especial. Podia agarrar a pelota de couro tratado em qualquer parte do gramado na Inglaterra dos primórdios. Único, usava os pés e as mãos quase na mesma jogada. Voava na lateral, corria pelo meio, atacava como um centroavante de carteirinha.
Foi somente em 1912 que a britânica The Football Association, que cria, dita, policia e muda (raramente) as sólidas regras do futebol, anunciou que o goleiro poderia segurar a bola com as mãos somente no interior da grande área riscada à cal. Fora dela, seria penalizado. Banido. Virou um ermitão, sai do seu hábitat natural apenas em ocasiões extraordinárias.
Foi muito por acaso, sem abandonar o interior do seu território sagrado, então área do Avaí, na castigada grama do Estádio da Ressacada, em Florianópolis, que Eduardo Martini entrou na relação dos goleiros inesquecíveis do Século 21 logo na metade do seu oitavo ano.
Na noite fria, de muita chuva e mais vento ainda, de 23 de agosto de 2008, aos 12 minutos de ação, o gaúcho repôs a bola com um chute alto e forte numa partida pela Série B do Brasileirão (3 a 1). A bola veloz e guiada pelo vento de beira de mar quicou sobre a meia-lua e engoliu o infeliz goleiro Mauro, do Paraná, perdido na marca do pênalti.
Sem imaginar, sem querer, sem sequer sonhar, Martini voltou aos tempos pré-históricos do futebol quando o goleiro fazia de tudo um pouco, defendia, chutava, animava. Transformava o placar. Quando o colunista lembra o episódio, o jogador, 37 anos, 22 como goleiro, treinando quase todos os dias desde os anos 1990, não esconde o orgulho. Mas o que ele quer contar é o significado que o inusitado lance tem na sua vida.
Vinícius Conrad: a resistência do futebol do Interior
— É um prazer rever, mas quem curte mesmo é meu filho, João Gabriel. Na época, era pequeno. Hoje tem 11 anos e fica todo prosa. Ele gosta de futebol. O Avaí me homenageou com uma placa no estádio. O gesto me diz tudo. Falo.
— O gol está nos sites. As imagens moram nos arquivos da Fifa, onde é tratado como gol histórico, cena que espantou quem curte futebol, menos o pobre Mauro e os fãs paranaenses. Nem o Pelé fez (risos) – digo.
– Nem o Rei, é verdade. Fiz grandes defesas na carreira, inacreditáveis mesmo, mas é um gol que marcau. Estranho, não? Mas esta é a vida de um goleiro. Numa grande área tudo pode acontecer, do melhor ao pior.
Um dos grandes ídolos de Eduardo Martini, o número 1 do Brasil-Pel, um dos maiores responsáveis pelo acesso do time da zona sul do Estado à Série B do Brasileirão, no mês passado, é um colega que usa os pés como ninguém.
– A técnica do Rogério Ceni é insuperável. Ele usa os pés e as mãos com a mesma habilidade. Gostava da energia, da explosão e da dedicação do Marcos, ex-Palmeiras. Admiro o Dida, do Inter. Na carreira aprendi um pouco com cada um. Ainda aprendo todos os dias.
– Não tem como não citar o Danrlei?
– Eu estava na base do Grêmio e ele já era campeão. Ganhou tudo. Fui seu reserva.
– Vocês saíram no tapa certa vez?
– Ele era explosivo, eu também. Nos desentendemos. Ele me acertou um soco de raspão na briga. Tentei pegá-lo depois, no vestiário. Me seguraram. Ainda bem. Mas nos reconciliamos depois num jogo, bem no meio de campo. Não guardo mágoas. Está tudo bem.
Eduardo Martini nasceu em Feliz, na região do Vale do Caí. Mudou-se logo para a vizinha São Sebastião do Caí. O Grêmio o descobriu.
– Guri ruim de bola e grandalhão. Me diz? Qual o futuro dele no futebol? No gol, claro.
O garoto tímido, 14 anos, alto, 1m86cm, foi convidado para treinar na Capital depois que uma equipe da base tricolor fez um amistoso na região. Topou. Sua vida ganhou novo ciclo.
– Pedi licença aos professores na escola. Precisava sair cinco minutos mais cedo das aulas. Pegava um ônibus, rodava 1h30min. No Mercado Público, tomava outro coletivo e seguia até o Olímpico. Foram anos assim, idas e voltas.
Outra jogada marcante da carreira nasceu com a camisa do Grêmio. Não foi com os pés.
– Em 2002, contra o Olimpia, pela Libertadores, defendi um pênalti na série de cinco cobranças. O árbitro (o argentino Daniel Giménez) mandou voltar. Disse que eu me adiantei. Na repetição, o Cavallero marcou e depois fomos eliminados da competição. O Tite era o técnico.
– Você se adiantou mesmo?
– Sim, o juiz não foi injusto, só repeti o que o Tavarelli, que depois jogaria no Grêmio, fez, sem que alguém tomasse a atitude correta.
Foto: Valdir Friolin/Agência RBS/BD
– Tudo seria diferente, o estádio teria saudado um herói. O lance mudou sua vida?
– O episódio é comentado até hoje. Vê a importância. Foi negativo, claro, mas aprendi.
– O que um goleiro tem na cabeça?
– É preciso ter uma capacidade fora do normal, conviver com falhas memoráveis e defesas impressionantes, navegar entre o céu e o inferno em 60 segundos.
O que você aprendeu neste tempo todo?
– A encontrar o equilíbrio psicológico. A buscar 100% de concentração. Ficar ligado na partida, como se os 90 minutos congelassem tudo em volta e só a bola ganhasse vida. O mundo fica estático.
– Um atleta de 37 anos tem futuro?
– Não penso assim. Não faço planos muito estendidos. Vivo ano a ano. Agora, qualquer falha faz o preconceito contra a idade voltar logo.
– Você é querido pelos torcedores do Brasil-Pel, sua camisa desde 2014?
– Fico até emocionado. Dias atrás ganhei uma caneca de um fã. Quando olhei, tinha o desenho de um pênalti que defendi ao lado da alça. Me emocionei.
– Mas isso basta?
– Não, mas ajuda. Hoje, se alguém procurar cinco bons e experientes goleiros no Rio Grande do Sul, precisa citar meu nome.
Martini entrou em férias na quinta-feira. A alegria de ter ajudado o Xavante a viver novo ciclo histórico vai se apagar aos poucos. Nos próximos dias, deve encarar a sua velha casa em São Sebastião do Caí sem o pai, Maurício, que faleceu recentemente, aos 63 anos.
– A vida é feita de recomeços e de lembranças. É preciso equalizar tudo. Seguir.
O Brasil-Pel é o outro lar de Martini. Mas o amanhã de um goleiro ninguém sabe, nem o próprio. Um gol nunca fecha de verdade. A grande área é uma terra inóspita.
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Foi somente em 1912 que a britânica The Football Association, que cria, dita, policia e muda (raramente) as sólidas regras do futebol, anunciou que o goleiro poderia segurar a bola com as mãos somente no interior da grande área riscada à cal. Fora dela, seria penalizado. Banido. Virou um ermitão, sai do seu hábitat natural apenas em ocasiões extraordinárias.
Foi muito por acaso, sem abandonar o interior do seu território sagrado, então área do Avaí, na castigada grama do Estádio da Ressacada, em Florianópolis, que Eduardo Martini entrou na relação dos goleiros inesquecíveis do Século 21 logo na metade do seu oitavo ano.
Na noite fria, de muita chuva e mais vento ainda, de 23 de agosto de 2008, aos 12 minutos de ação, o gaúcho repôs a bola com um chute alto e forte numa partida pela Série B do Brasileirão (3 a 1). A bola veloz e guiada pelo vento de beira de mar quicou sobre a meia-lua e engoliu o infeliz goleiro Mauro, do Paraná, perdido na marca do pênalti.
Sem imaginar, sem querer, sem sequer sonhar, Martini voltou aos tempos pré-históricos do futebol quando o goleiro fazia de tudo um pouco, defendia, chutava, animava. Transformava o placar. Quando o colunista lembra o episódio, o jogador, 37 anos, 22 como goleiro, treinando quase todos os dias desde os anos 1990, não esconde o orgulho. Mas o que ele quer contar é o significado que o inusitado lance tem na sua vida.
Vinícius Conrad: a resistência do futebol do Interior
— É um prazer rever, mas quem curte mesmo é meu filho, João Gabriel. Na época, era pequeno. Hoje tem 11 anos e fica todo prosa. Ele gosta de futebol. O Avaí me homenageou com uma placa no estádio. O gesto me diz tudo. Falo.
— O gol está nos sites. As imagens moram nos arquivos da Fifa, onde é tratado como gol histórico, cena que espantou quem curte futebol, menos o pobre Mauro e os fãs paranaenses. Nem o Pelé fez (risos) – digo.
– Nem o Rei, é verdade. Fiz grandes defesas na carreira, inacreditáveis mesmo, mas é um gol que marcau. Estranho, não? Mas esta é a vida de um goleiro. Numa grande área tudo pode acontecer, do melhor ao pior.
Um dos grandes ídolos de Eduardo Martini, o número 1 do Brasil-Pel, um dos maiores responsáveis pelo acesso do time da zona sul do Estado à Série B do Brasileirão, no mês passado, é um colega que usa os pés como ninguém.
– A técnica do Rogério Ceni é insuperável. Ele usa os pés e as mãos com a mesma habilidade. Gostava da energia, da explosão e da dedicação do Marcos, ex-Palmeiras. Admiro o Dida, do Inter. Na carreira aprendi um pouco com cada um. Ainda aprendo todos os dias.
– Não tem como não citar o Danrlei?
– Eu estava na base do Grêmio e ele já era campeão. Ganhou tudo. Fui seu reserva.
– Vocês saíram no tapa certa vez?
– Ele era explosivo, eu também. Nos desentendemos. Ele me acertou um soco de raspão na briga. Tentei pegá-lo depois, no vestiário. Me seguraram. Ainda bem. Mas nos reconciliamos depois num jogo, bem no meio de campo. Não guardo mágoas. Está tudo bem.
Eduardo Martini nasceu em Feliz, na região do Vale do Caí. Mudou-se logo para a vizinha São Sebastião do Caí. O Grêmio o descobriu.
– Guri ruim de bola e grandalhão. Me diz? Qual o futuro dele no futebol? No gol, claro.
O garoto tímido, 14 anos, alto, 1m86cm, foi convidado para treinar na Capital depois que uma equipe da base tricolor fez um amistoso na região. Topou. Sua vida ganhou novo ciclo.
– Pedi licença aos professores na escola. Precisava sair cinco minutos mais cedo das aulas. Pegava um ônibus, rodava 1h30min. No Mercado Público, tomava outro coletivo e seguia até o Olímpico. Foram anos assim, idas e voltas.
Outra jogada marcante da carreira nasceu com a camisa do Grêmio. Não foi com os pés.
– Em 2002, contra o Olimpia, pela Libertadores, defendi um pênalti na série de cinco cobranças. O árbitro (o argentino Daniel Giménez) mandou voltar. Disse que eu me adiantei. Na repetição, o Cavallero marcou e depois fomos eliminados da competição. O Tite era o técnico.
– Você se adiantou mesmo?
– Sim, o juiz não foi injusto, só repeti o que o Tavarelli, que depois jogaria no Grêmio, fez, sem que alguém tomasse a atitude correta.
Foto: Valdir Friolin/Agência RBS/BD
– Tudo seria diferente, o estádio teria saudado um herói. O lance mudou sua vida?
– O episódio é comentado até hoje. Vê a importância. Foi negativo, claro, mas aprendi.
– O que um goleiro tem na cabeça?
– É preciso ter uma capacidade fora do normal, conviver com falhas memoráveis e defesas impressionantes, navegar entre o céu e o inferno em 60 segundos.
O que você aprendeu neste tempo todo?
– A encontrar o equilíbrio psicológico. A buscar 100% de concentração. Ficar ligado na partida, como se os 90 minutos congelassem tudo em volta e só a bola ganhasse vida. O mundo fica estático.
– Um atleta de 37 anos tem futuro?
– Não penso assim. Não faço planos muito estendidos. Vivo ano a ano. Agora, qualquer falha faz o preconceito contra a idade voltar logo.
– Você é querido pelos torcedores do Brasil-Pel, sua camisa desde 2014?
– Fico até emocionado. Dias atrás ganhei uma caneca de um fã. Quando olhei, tinha o desenho de um pênalti que defendi ao lado da alça. Me emocionei.
– Mas isso basta?
– Não, mas ajuda. Hoje, se alguém procurar cinco bons e experientes goleiros no Rio Grande do Sul, precisa citar meu nome.
Martini entrou em férias na quinta-feira. A alegria de ter ajudado o Xavante a viver novo ciclo histórico vai se apagar aos poucos. Nos próximos dias, deve encarar a sua velha casa em São Sebastião do Caí sem o pai, Maurício, que faleceu recentemente, aos 63 anos.
– A vida é feita de recomeços e de lembranças. É preciso equalizar tudo. Seguir.
O Brasil-Pel é o outro lar de Martini. Mas o amanhã de um goleiro ninguém sabe, nem o próprio. Um gol nunca fecha de verdade. A grande área é uma terra inóspita.
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